O
ESPECTRO DO FEMININO: DO SAGRADO AO PROFANO
Ana
Carolina Silva Freire
Elisa
Maria Chab Billwiller
Márcia
Helena Mendonça
Este
artigo baseia-se numa monografia de mesmo nome, elaborada como
requisito para a obtenção do título de Psicólogo
pela Universidade Tuiuti do Paraná e orientada pelo Professor
Nélio Pereira da Silva, segundo a abordagem analítica
de Carl Gustav Jung.
O
estudo enfocou o caso da paciente S.D.A. que pareceu particularmente
interessante por privilegiar o tema da divisão e não
complementaridade do feminino. Este é um tema de grande
relevância e permanente atualidade visto que, a cultura
contemporânea ocidental, embora venha sofrendo lentas modificações,
foi baseada, durante séculos em valores patriarcais.
A
solicitação de atendimento partiu da própria
paciente, por sugestão de uma colega de trabalho, em função
de sentir muita tristeza e apresentar repetidas crises de choro,
aparentemente imotivadas.
S.
é uma jovem de aspecto frágil, estatura mediana,
olhos claros e cabelos castanhos. Não possui nenhum traço
físico particularmente marcante. Sua maneira de vestir
denota discrição, com predileção por
tons pastéis e cortes tradicionais. Mora com a família
em um bairro da periferia da cidade de Curitiba. A família
é de origem humilde, pertencendo a um estrato sócio-econômico
de baixo poder aquisitivo. Apesar do acesso restrito aos bens
de consumo, S. sempre teve assistência médica e odontológica
adequadas, estudo financiado pelo trabalho dos pais até
a conclusão do 2o. Grau e residência em casa própria
da família.
S.
possui profunda convicção religiosa, sendo católica
praticante e fervorosa. Tem uma forte ligação com
a figura da Virgem Maria e gosta de interpretá-la nas peças
de teatro da igreja por identificar-se com o sofrimento que Maria
sofreu como mãe.
Ao
longo dos atendimentos S. referiu-se a uma série de sintomas
físicos, que incluíam: gastrite nervosa, gagueira
na infância, problemas de memória e o desenvolvimento
de um tumor benigno no seio. Paralelamente a estes trouxe vasta
sintomatologia psíquica envolvendo: depressão, falta
de ânimo para trabalhar e manter cuidados pessoais com a
própria aparência, angústia, tristeza, sentimentos
de persecutoriedade com relação a parentes, amigos
e superiores hierárquicos, traços obsessivos manifestados
tanto no ambiente doméstico como no trabalho, priorizando
ordem e eficiência.
Revela
ter sido sempre muito quieta e reservada. Tem poucos amigos e
confessa não ter com quem partilhar suas dúvidas
e angústias. Seu convívio social é bastante
restrito, limitando-se ao grupo de jovens de sua igreja. Não
costuma nuclear amizades no ambiente de trabalho e suas relações
familiares restringem-se quase que exclusivamente aos pais e irmãs.
Tem
preferência por ficar em casa nos finais de semana, lendo
e ouvindo música. Apesar de sua timidez confessa, como
outras atividades de lazer refere a participação
em peças de teatro na igreja e no colégio, estudo
da língua italiana e a prática de danças
como o flamenco e a dança do ventre.
Teve
apenas um namorado, por um breve período e seus relacionamentos
com rapazes são, em geral fugazes e pouco profundos. Embora
tenha consciência de ser atraente aos olhares masculinos,
tem grande dificuldade em manter a continuidade deste interesse.
Refere-se a uma tentativa de abuso sexual na infância por
parte de um primo. Confessa ter sentido nojo do mesmo e que esta
experiência ainda interfere em seus relacionamentos afetivos.
Possui
um ligação extraordinariamente forte com a mãe.
A imagem que passa da figura materna é a de uma mulher
sofredora e injustiçada, cuja vida foi pontilhada de trabalho
árduo, sacrifício em prol das filhas e renúncia
ao prazer e alegria. Em contrapartida, o pai, embora reconhecido
como esforçado e trabalhador, desempenhando adequadamente
a função de mantenedor da família, é
sentido como indiferente. Sua ausência é persistente
no discurso da paciente.
Durante
todo o período em que esteve sob atendimento psicológico,
a paciente referiu-se com freqüência à dúvidas
sobre seu futuro profissional, sobre a continuidade ou não
de seus estudos e sobre a escolha do curso superior que melhor
correspondesse a sua vocação.
Os
atendimentos de S. sempre se caracterizaram pela riqueza de imagens
trazidas, tanto sob a forma de relatos de sonhos, como de fantasias
conscientes e associações livres. Apesar do discurso
e das tendências conscientes do indivíduo, é
nos sonhos que o lado obscuro, a personalidade mais profunda da
qual se distancia no estado de vigília, se manifesta, compensando
este distanciamento e mostrando a necessidade de reequilibrar
os opostos sentidos. O conteúdo de seus sonhos tem caráter
nitidamente compensatório, em franca contraposição
à sua postura consciente. Ao mesmo tempo que se apresenta
de forma casta e pura, seus sonhos são povoados por imagens
de cunho nitidamente sexual: uma sensual cigana num deslumbrante
vestido vermelho, dançando freneticamente em torno de uma
fogueira; um estuprador sinistro e sedutor que, ao longo da série
de sonhos se aproxima lenta e inexoravelmente da sonhadora. Em
outros sonhos manifesta-se com clareza seus conflitos quanto à
consumação da conjunção carnal com
um parceiro masculino: sonha estar vestida de noiva e entrar dançando
numa igreja em que não há noivo a esperá-la,
ou então, sonha que seu vestido de noiva muda repentinamente
de cor, tingindo-se do negro da viuvez. O elemento daa troca das
cores do vestido remete a JUNG (1973) quando diz: "Todo extremo
psicológico contém secretamente o seu oposto ou
está de alguma forma em estreita relação
com ele. Na verdade, é desta contradição
que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar. Não
existe rito sagrado que eventualmente não se inverta em
seu oposto, e quanto mais extremo se tornar uma posição,
tanto mais se pode esperar a sua enantiodromia, sua reversão
para o contrário".
Em
outras manifestações do inconsciente relatadas aparecem
símbolos teriomórficos clássicos: a serpente
e o cavalo. As conjunções das imagens de serpente
e de cavalo trazidas pela paciente refletem o conflito entre a
postura consciente da mesma e sua tendência inconsciente.
O contraste entre o cavalo e a serpente representa o contraste
da libido em si mesma, uma vontade de avançar e recuar
ao mesmo tempo. A libido não é só um impulso
irrefreável para a frente, um infindável desejo
de viver e construir, mas também à semelhança
do sol, alterna ascensão e declínio. No indivíduo
manifesta-se o ímpeto de incontida expansão da vida,
porém frequentemente se oculta um apego teimoso e inadequado
ao modo de vida levado até então. A imagem da modificação
pertence à existência psíquica individual
e germina no inconsciente, aparecendo no consciente em sonhos.
Para BOSNAK (1994), quanto mais o consciente se negar a captar
esta imagem, tanto mais desfavoráveis e assustadores serão
os símbolos através dos quais ela se manifesta.
JUNG (1973) diz que a serpente, como símbolo do medo, tem
papel importante nos sonhos. Via de regra ela exprime uma animação
anormal do inconsciente ( um inconsciente constelado). A interpretação,
como sempre, depende de inúmeras circunstâncias individuais,
devendo ser modificadas de acordo com elas. Para os jovens, em
geral, ela representa o medo da vida. Jung frequentemente observou,
nos indivíduos com esta dinâmica, uma grande estreiteza
do consciente, uma acanhada rigidez do posicionamento e um horizonte
intelectual e afetivamente limitado por uma ingenuidade infantil.
Durante
todo o período de atendimento, S. apresentou sempre uma
atitude muito introvertida. Seu fluxo de energia, atenção
e interesse manifestava-se dirigido para dentro, para longe do
mundo objetivo, na direção dos estados subjetivos
da consciência. Como todos os introvertidos revelou-se pouco
social, preferindo a solidão ou a companhia de poucos amigos
e da família. Refletia sobre suas experiências antes
de nelas atuar e não era muito expressiva em sua comunicação.
Procurou
atendimento com queixa de depressão, chorando profusamente
na primeira sessão. A depressão deve ser considerada
um fenômeno de compensação inconsciente, cujo
conteúdo, para alcançar eficiência plena deveria
tornar-se consciente. Segundo JUNG (1973), o acompanhamento da
tendência depressiva e a regressão consciente, possibilitaria
a integração das imagens produzidas pelo inconsciente
ao consciente, o que corresponderia ao objetivo da depressão.
S.
traz, em suas manifestações conscientes, clara identificação
com o arquétipo de Deméter, a deusa maternal. Em
contrapartida, em seus sonhos, aparece o arquétipo de Afrodite,
a deusa do amor. Tal aspecto é confirmado pelo fato de
S. manifestar grandes dificuldades em conciliar seus impulsos
maternais e eróticos. Da análise dos sonhos e discurso
da paciente, estabeleceu-se com clareza a díade Deméter-Afrodite,
Lilith-Eva, reforçando a idéia da cisão do
feminino em S. Segundo CORBETT (1990), o mesmo díptico
aparece na mitologia cristã, entre a Virgem Maria e Maria
Madalena. A Virgem Maria é a idealização
da feminilidade, pessoa de absoluta pureza sobre a qual não
há sombra de pecado. Sua primeira associação
é com o filho, que é sacrificado; o papel de Maria
como esposa e mulher é insignificante. No lado oposto,
está Maria Madalena, o lado sexualizado da díade,
como figura feminina com quem as mulheres podem se relacionar
sem trair sua natureza essencial. Sua imagem, como o da prostituta
sagrada, é capaz de encerrar todos os aspectos dinâmicos
e transformadores do feminino - paixão, espiritualidade
e prazer. Através dela, a Grande Deusa, vive no cristianismo.
Da mesma maneira as mulheres do mundo patriarcal, as modernas
Evas, freqüentemente encontram sua natureza Lilith no espelho,
isto é, na sua reflexão narcísica. A mulher
precisa ficar atenta a seus próprios valores naturais,
unir Lilith a Eva, e viver o eterno ciclo de alternância
entre estes opostos. Esta divisão entre o sagrado consciente
(identificado com Deméter, Eva e a Virgem Maria) e o profano
inconsciente (representado por Afrodite, Lilith e Maria Madalena),
tornam o feminino consciente de S. unilateral e portanto neurótico.
Corroborando
esta idéia, HILLMAN (1980), traz em Deméter um exemplo
de figura mítica com evidências de comportamento
neurótico e atitude introvertida. Com o rapto da filha
Perséfone, ela se deprime, sendo possível nesta
depressão encontrar atributos da psiquiatria clássica:
a deusa chora sem parar, deixa de banhar-se e de comer. Outra
peculiaridade da depressão de Deméter é sua
tendência em buscar refúgio de seu próprio
aprofundamento, nas coisas da realidade. Ela não sai sozinha
pelas florestas como Ártemis, nem tenta provar sua auto-suficiência
como Hera, nem se lança numa aventura amorosa como Afrodite.
Volta-se para sua alma, torna-se coisa ausente de praticidade,
defende-se de seu auto-conhecimento, valendo-se das desculpas
da realidade, da mesma forma como a paciente: "Estes sonhos
estão me incomodando e se eu pudesse não sonharia
mais. Não quero mais falar sobre os sonhos. Acho que são
só bobagens da minha cabeça. Quero falar sobre o
que é importante, de verdade. Quero falar sobre minhas
dúvidas, sobre as vantagens em voltar a estudar, sobre
o meu futuro, sobre as coisas que vou perder se voltar a estudar
e como está sendo difícil para mim decidir qualquer
coisa". Além disto a necessidade do espírito
de Deméter pode expressar-se por uma conversão ou
polarização religiosa. Tais características
estão igualmente presentes nas atitudes conscientes de
S.: "Só freqüento o grupo de jovens da minha
igreja... Sou católica praticante e levo a sério
minhas atividades na igreja...Faço parte da pastoral da
juventude... Meu trabalho na igreja é de muita responsabilidade
e organização. Sou muito exigente comigo mesmo e
com todos os colegas do grupo. Eles sempre me dizem que sou uma
chata. E eu sou mesmo, uma chata assumida". "Deus é
muito importante na minha vida. Converso muito com Ele e peço
que me mostre o caminho. Mesmo assim, às vezes fico revoltada
com Deus e pergunto para Ele: Por que estas coisas acontecem comigo
( por exemplo: o nódulo no seio, as crises de depressão,
a falta de namorado) que me esforço para fazer tudo certo?"
A
paciente, identificando-se com Deméter, enquanto unilateralidade
consciente, sofre intensamente e provoca sofrimento nos outros,
não se delineando nenhuma garantia de mudança futura.
Excluída a remota possibilidade de remissão espontânea,
ela poderia permanecer assim em sua neurose para sempre. Outra
possibilidade seria a constelação de outro arquétipo,
desviando-a deste contínuo processo de conflito psíquico.
Mas um alívio como este seria antes um derivativo do tipo
"cura pelo repouso" ou uma "mudança de cenário"
e evitaria a análise das profundezas de seu próprio
arquétipo particular. Esta parece ter sido a opção
da paciente ao resolver desligar-se precocemente dos atendimentos,
bem como renunciar a expressões efetivas de seu lado feminino
inconsciente: a dança e o estudo da língua italiana.
Preferiu, momentaneamente, buscar um paliativo para a pressão
crescente de seus conteúdos inconscientes. Desviou-se do
eixo Deméter-Afrodite, intensamente energizado, para constelar
Atena.
Atena
representa a mulher moderna que mora na cidade, guia todos os
aspectos da carreira e da profissão. Relaciona-se com homens
com quem possa partilhar ideais, ambições, metas
profissionais e lutas. Não irá casar-se com homens
assim, que freqüentemente são reduzidos a colegas
intelectuais e ela prefere mantê-los como amizades íntimas
e duradouras. Desta forma, a paciente desloca-se para a díade
da independência: Ártemis-Atena, pois ambas as deusas
tem um temperamento mais propenso para viver e trabalhar em solidão
do que ao lado de um companheiro. No mundo antigo, elas eram as
deusas "virgens".
No
entanto, a espécie de ação que de fato beneficiaria
a paciente não seria a esquiva representada pela constelação
de Atena. Seria antes o esforço genuíno para a integração
do seu feminino e da imagem masculina complementar. Para tanto,
seria necessário, primeiro, que seus mecanismos egóicos
de defesa fracassassem.
Mas,
a paciente sentiria o fracasso de suas defesas como uma violação
psíquica. É bem possível que ao longo dos
atendimentos sentisse como se algo lhe estivesse acontecendo,
e isto seria a última coisa que ela sente que quer, exatamente
aquilo do que vem se defendendo. Assim, a força fálica
lhe explodiria de cima, através da base de sua consciência,
de suas defesas, e tomaria a sua virgindade acalentada no regaço
maternal, determinando o final de sua inocência e seu ingresso
na vida adulta.
Pela
imensa dificuldade de integrar seu feminino, o consciente da paciente
tende a chamar para si o rapto e a violência pois, aquilo
de que ela se defende e que constitui o oposto de sua atitude
consciente, não lhe dará sossego e a perturbará
até que seja aceito. Segundo JUNG (1995), a única
pessoa que escapa da lei sinistra da enantiodromia é aquela
que sabe como se afastar do inconsciente, não reprimindo-o
- porque neste caso o inconsciente haverá de atacá-la
pelas costas - mas, colocando-o claramente à sua frente,
como aquilo que ela , a pessoa, não é. Esta atitude
permitiria, por um lado, despojar o ego da falsa cobertura da
persona, e por outro, do poder de sugestão das imagens
primordiais, o que para Jung representa o objetivo do processo
de individuação.
A
moralidade judaico-cristã tem, de forma direta ou indireta,
influenciado poderosamente as atitudes com relação
ao feminino. Esta visão convencional relega o feminino
ao exílio, negando o instinto, o sentimento e dissocia
a maternidade da sexualidade. Este legado milenar de cisão
interna toca indiscriminadamente a todas as mulheres, destituindo-lhes
de identidade como tal. Mulheres eternamente em busca de si mesmas,
com a única e suprema pretensão de serem apenas
o que lhes é inalienável por herança genética,
por direito e por justiça: serem mulheres na mais profunda
e plena acepção da palavra.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BOSNAK,
Robert. Breve curso sobre sonhos. Técnica junguiana para
trabalhar com os
os
sonhos. Coleção Amor e Psiquê. São
Paulo : Paulus, 1994.
BRANDÃO,
Junito de Souza. Mitologia grega. Vol. II. 6.ª ed. Petrópolis
: Vozes, 1995.
CORBETT,
Nancy Q. A prostituta sagrada. Coleção Amor e Psiquê.
São Paulo : Paulus, 1990.
HILMANN,
James ( Org.) Encarando os deuses. São Paulo : Cultrix,
1987.
JUNG,
Carl G. Símbolos da Transformação. C.W. V,
2.ª ed. Petrópolis : Vozes, 1973.
___________.
Psicologia do inconsciente. C.W. VII/1, 10.ª ed. Petrópolis
: Vozes, 1995.
___________.
Ab-reação, análise dos sonhos, transferência.
C.W. XVI/2, Petrópolis : Vozes, 1971.